UFF barra estudante parda, reitor se exime e caso gera indignação
- SINTUFF
- há 5 dias
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A Universidade Federal Fluminense (UFF) voltou a protagonizar um episódio que expõe as contradições e falhas institucionais no processo de heteroidentificação racial. A estudante Samille Ornelas, baiana, de origem pobre, se autodeclarou parda e foi aprovada para o curso de Medicina da UFF via Sistema de Cotas para pretos(as)/pardos(as) e de baixa renda pelo SISU 2024. A banca de heteroidentificação da universidade, no entanto, considerou que ela “não apresenta características fenotípicas” compatíveis com a política afirmativa — decisão contestada por ampla parcela da comunidade acadêmica e da opinião pública.
Após obter liminar judicial e iniciar o curso, Samille teve sua matrícula cancelada ao final do semestre, quando o recurso foi derrubado no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Desde então, o caso tem gerado forte repercussão na mídia nacional e foi tema de debate no Conselho Universitário (CUV) da UFF nesta terça-feira (6).
Conselheira Alessandra Primo: “Foi um erro. Então vamos corrigir”
A conselheira Alessandra Primo, representante dos(as) técnicos(as) administrativos(as), foi enfática ao cobrar um posicionamento institucional da UFF:
“Os objetivos de desenvolvimento sustentáveis são inúmeros. Dentre eles, a gente tem o ODS 10, que é a redução da desigualdade, o ODS5, a promoção da igualdade de gênero. E por que que eu trago isso hoje? Pra gente observar e analisar o caso da aluna Sam Ornelas, aluna negra, foi considerada parda, de origem humilde, pobre, se candidatou ao curso de medicina, passou, mas a Comissão de Identificação não a considerou como tal.”
“Ela recorreu na justiça, ganhou, cursou parte do primeiro período, faltando apenas duas provas para acabar o primeiro período, ela foi desvinculada da UFF. Já tá um assunto nacional, já aparece no G1, tá em todos os jornais locais. É necessário que a UFF se manifeste.”
“Uma falha pode mudar o futuro de uma pessoa. É necessário que a gente corrija essas falhas. A gente tem que assumir: foi um erro? Foi. Então vamos corrigir.”
A conselheira Alessandra Primo propôs que o CUV deliberasse para que a estudante tivesse o direito a uma reavaliação pela comissão. A proposta será apreciada pelas câmaras especializadas e pode ser votada na sessão do Conselho em setembro.
Conselheira Livia Jim: “Presencialmente não tem dúvidas que ela é uma estudante parda”
A conselheira Livia Jim, representante estudantil e coordenadora-geral do DCE, também se posicionou duramente:
“A gente enfrenta no conselho a própria denúncia da questão da falta de democracia do espaço. [...] Todo o processo das cotas da UFF ocorre de forma remota. [...] Existem câmeras que embranquecem as pessoas. [...] Ano passado teve um estudante que teve a cota negada porque não saiu o áudio no vídeo dele, mesmo ele sendo claramente uma pessoa racializada.”
“Presencialmente, não tem dúvidas, entendeu? Que ela é uma estudante negra. Então, se pelo menos o recurso pudesse ser feito dessa forma, se ela tivesse direito a uma banca de identificação presencial, isso evitaria sim esse desgaste emocional que está sendo feito.”
“A gente quer que a universidade abra as portas para que a gente possa dialogar em relação a esse caso da estudante, que ela consiga se matricular na UFF de volta. [...] Mas que principalmente a gente consiga pensar pro futuro: como que a gente vai fazer a política de cotas realmente ser justa na nossa universidade e melhorar os processos da banca.”
Reitor se exime e diz que “não tem o poder” de intervir
Em sua resposta, o reitor Antonio Claudio Lucas da Nóbrega se limitou a descrever o trâmite jurídico, alegando que a universidade seguiu o rito legal e que a decisão final partiu da Justiça:
“A banca de identificação é composta dessa maneira. A opinião do reitor não tem nenhuma relevância sobre esse aspecto. [...] A banca tomou uma decisão. Houve recurso. Foi montada uma outra banca. A pessoa fez uma demanda na justiça.”
“Na primeira instância decidiu por determinar à UFF que concedesse a vaga. [...] A Advocacia-Geral da União recorreu ao tribunal, e a decisão do tribunal [...] foi: ‘não somos banca de identificação, a UFF seguiu corretamente a lei’. [...] A procuradoria da UFF emitiu um parecer de ordem executória: ‘cumpra-se’. [...] A PROGRAD tomou a providência que a justiça mandou.”
“A minha opinião, os meus sentimentos, meu coração apertado [...] eu não tenho esse poder, e nem devo ter. Nenhum reitor deve ter esse poder.”
Crítica política: UFF poderia rever o caso, mas escolhe se omitir
A resposta do reitor, além de fria e tecnocrática, oculta o essencial: a própria decisão do Tribunal reconhece que a avaliação fenotípica é responsabilidade da universidade, não do Judiciário. Isso significa que a UFF poderia — e ainda pode — rever o caso por meio de seus mecanismos institucionais, inclusive constituindo nova banca ou criando instâncias presenciais para análise de recursos. Ou seja, trata-se de escolha política da instituição, não de uma determinação impositiva da Justiça.
Ao insistir em apresentar o caso como um “mero procedimento técnico” e ao sustentar que a universidade apenas “cumpre ordens”, o reitor esvazia a dimensão pública e política de seu próprio cargo. Reitores(as) de universidades públicas federais não são despachantes administrativos — são autoridades políticas com dever de representar sua comunidade diante da sociedade.
Nesse sentido, a omissão da UFF é grave. O caso Samille expõe não só o drama de uma estudante parda, aprovada legitimamente, que foi impedida de continuar seus estudos por uma decisão questionável, mas também o constrangimento institucional de uma universidade que recusa enfrentar com seriedade e coragem um erro de grande repercussão nacional.
SINTUFF exige que a UFF reveja o caso
O SINTUFF, sindicato que representa os(as) servidores(as) técnico-administrativos(as) da UFF, se solidariza com Samille Ornelas, repudia a postura omissa da reitoria e exige que a universidade revise imediatamente esse processo.
A política de cotas é uma conquista histórica do povo negro e pardo no Brasil e não pode ser aplicada com rigidez burocrática, insensibilidade e desumanidade. É dever da universidade pública defender essa política com firmeza — o que, neste caso, não foi feito.
Trata-se de uma violência institucional o desligamento da estudante sem qualquer comunicado, uma vez que Samille soube de sua exclusão do quadro de alunos da universidade quando foi passar o seu cartão estudantil no Restaurante Universitário.
O SINTUFF considera que a UFF ainda pode e deve reparar esse equívoco, acionando seus próprios instrumentos administrativos, com nova análise do caso por uma banca presencial e com o devido cuidado diante do impacto humano, social e simbólico envolvido. Fingir que não há nada a ser feito é, neste caso, mais que um erro jurídico — é uma escolha política omissa.

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