Samille não é branca, todos sabem, mas a UFF se recusa a rever seu equívoco
- SINTUFF
- 26 de ago.
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Atualizado: 3 de set.

Samille não é uma pessoa branca. Não é, nunca foi, nem nunca será. Não importa a maquiagem, o cabelo alisado ou a incidência da luz de uma câmera que faça sua pele parecer mais clara. Autodeclarada "parda", é evidente, a olho nu, que a estudante baiana Samille Ornelas — aprovada em Medicina na UFF pelo sistema de cotas para pessoas pretas/pardas e de baixa renda — não deve ser confundida com uma pessoa branca. Mas foi, o que resultou no cancelamento de sua matrícula na UFF.
O caso não é inédito. Em 2024, o estudante Allan Pinto Ignácio, negro de pele retinta, teve a matrícula rejeitada sob alegação da UFF de que seu vídeo de autodeclaração não continha áudio. O detalhe, irrelevante para a identificação racial, foi considerado pela Justiça “excessivamente rigoroso e desprovido de razoabilidade”. Allan só ingressou no curso graças a uma liminar.
Agora, em 2025, a universidade volta ao centro de uma polêmica que expõe uma nova falha em seu sistema de heteroidentificação. Samille chegou a iniciar o curso amparada por decisão judicial. Mas ao fim do semestre, após a derrubada da liminar no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, sua matrícula foi cancelada. Desde então, o caso ganhou repercussão nacional e mobilizou a comunidade acadêmica.
A resistência da universidade em dialogar para constituir uma nova banca presencial e enfrentar o problema de ampla repercussão, atinge diretamente a imagem da UFF, projeta uma instituição de ensino refém do formalismo, presa a uma postura provinciana e negacionista. A decisão judicial apenas derrubou a liminar, mas não impossibilita nem proíbe a UFF de rever sua decisão por seus próprios meios.
Samille, por sua vez, tem recebido apoio expressivo. Fotografias de sua infância e juventude deixam ainda mais evidente a aberração institucional do caso. Renomadas intelectuais do movimento negro, como Carla Akotirene e Bárbara Carine, referências nacionais na produção de conhecimento sobre raça e desigualdade, manifestaram solidariedade à estudante. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, também se comprometeu a ajudar. Entidades como ADUFF, DCE-UFF e SINTUFF publicaram notas cobrando que as bancas recursais sejam presenciais. É impossível ignorar: se fosse uma pessoa branca, Samille não receberia esse movimento de apoio. Ao contrário, seria acusada de fraude.
Não se trata de negar a possibilidade de erros. Um sistema que analisa milhares de pedidos a partir de vídeos curtos pode resultar em equívocos. O fato da banca ser estritamente online, sem possibilidade de recurso presencial, é um grave problema, já que os vídeos e os monitores podem distorcer a compreensão real do que está sendo visto em tela. A reitoria agir de forma estritamente formal, ignorar a repercussão e a gravidade do caso, não buscar formas de viabilizar uma nova avaliação e de promover melhorias no sistema, fragiliza todo o processo de heteroidentificação.
Entrevistada, Samille relatou o momento em que descobriu que estava fora da universidade:
“Fui barrada na entrada do restaurante universitário. Quando tentei usar o aplicativo que controla o acesso, apareceu que meu vínculo com a universidade estava negado. Achei que fosse um erro no sistema, mas ao entrar no site do IdUFF vi que todos os meus dados haviam sido apagados. A única coisa disponível era minha declaração de matrícula, que dizia: ‘matrícula cancelada por liminar caçada’. Foi como se meu mundo tivesse desabado. Não esperava por aquilo, foi um choque absoluto. Entrei em desespero, chorei, tentei falar com pessoas que pudessem me ajudar, mas não tive retorno. Passei dois meses buscando ajuda em todos os meios possíveis, sem sucesso. Nesse período, perdi peso, não dormi, fiquei completamente desnorteada.”
Sobre a situação jurídica, Samille acrescenta:
“Estamos tentando um recurso no STF e no STJ, mas também buscamos uma reunião com o reitor para ver o que pode ser feito para resolver isso. Espero que ele aceite.”
Segundo a estudante, a universidade jamais abriu espaço para reavaliar o caso. Questionada sobre o sentimento diante da recusa da UFF em rever a decisão, Samille foi categórica:
“Me sinto completamente negligenciada e invisível. Eles me apagaram do sistema sem o mínimo de sensibilidade, ainda mais tratando-se de Medicina, um curso tão difícil de conquistar. Não fizeram esforço para entender se realmente havia erro. Ninguém me viu pessoalmente, tudo se baseou em um vídeo de 17 segundos. É como se eu tivesse perdido minha dignidade e tudo o que construí em 30 anos.”
O SINTUFF se solidariza com Samille e cobra que a reitoria rompa o formalismo, receba a estudante e encontre os meios de corrigir um erro grave e visível. Não se trata apenas de um caso individual. A recusa em enfrentar a questão põe em dúvida o processo de heteroidentificação e enfraquece a política de cotas. É fundamental que a comunidade universitária disponha de mecanismos capazes de revisar decisões visivelmente aberrantes, que produzem danos profundos e injustos na vida de pessoas que não cometeram qualquer irregularidade.

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